“Que você e seus filhos vivam em tempos interessantes” – o que parece um mero desejo educado era, na verdade, quase uma praga, pois um tempo interessante na visão da velha China era um tempo de rupturas, de problemas, de crises. No mundo moderno a quebra da rotina tornou-se meta de quem se pretende descolado, assim como interessante na cultura ocidental tem um sentido geralmente positivo. O título desse post, porém, referindo-se a 2014, prevê que ele será um ano interessante, mas no velho sentido chinês.
Francamente, o ano não poderia começar pior. Os atrasos nos estádios para a Copa, os atrasos nas obras complementares e até mesmo a inexistência de obras prometidas não chegam a comprometer e muito menos surpreender, da mesma forma que o estouro em todos os orçamentos ligados ao megaevento.
Se tudo isso não acarreta um peso negativo para esse 2 de janeiro, primeiro dia útil do ano (meio útil, só), de onde vem esse peso?
Simples, prezado e paciente leitor que conseguiu chegar até aqui: de uma bela coleção de abacaxis, começando pela ameaça da entrada da justiça dita comum na cena do futebol, associada ao zum-zum-zum que já se ouve em corredores e salas presidenciais de um “novo” campeonato brasileiro. Talvez, quem sabe, com 24 clubes. Ninguém cai, quatro sobem, como é de direito.
A coisa vai mais longe e fica muito pior do que isso: mentes saudosas dos tempos bagunçados das sempre diferentes fórmulas de mata-mata já sonham com o regresso, digo, retrocesso àqueles tempos.
Tétrico.
No bojo dessas vontades reside o mesmo de sempre: a vontade de premiar o oba-oba, a vontade de jogar no lixo planejamento e trabalho sério em troca de aventuras rocambolescas que, muitas das vezes, resultam em títulos – que entram para a história, rendem lembranças fantásticas, provocam rendas fabulosas, geram infinitas conversas e… Conduzem os clubes para o abismo provocado por dívidas inconsequentes e enlouquecidas.
A volta do mata-mata é, também, a volta de um sistema cruel para os clubes pequenos, que perderão, já no começo da temporada, a possibilidade de ganhar dinheiro com seus patrocínios. E se antes clubes menores chegavam às finais e até a títulos, isso era baseado na feliz combinação de um elenco bem montado e bem encaixado por um professor esperto. Hoje, porém, sem o escravizante passe, isso é mais difícil. Enterra de uma vez por todas qualquer proposta de venda de carnês para a temporada, de começo certo e final incerto.
Dos vinte ou vinte e quatro clubes da primeira divisão, dois terços deles ou perto disso, ficarão sem ter o que fazer na reta final da principal competição do nosso futebol. Os classificados “pouparão” seus times para os jogos decisivos, como era hábito e como é, ainda, mas um pouco menos.
Estaremos, novamente, na contramão da história, e tudo por conta de duas falhas grotescas em escalações de jogadores sem condições de jogo e a ação correta, legítima e, claro, legal, do STJD a respeito, indo contra a gritaria geral que queria, custasse o que custasse, uma autêntica virada de mesa e o desrespeito puro e simples às regras que valeram por 38 rodadas para 18 times.
Ah, Brasil, vá alguém tentar entender…
Praticamente, como vocês viram, nem falei em Copa do Mundo e nem preciso. Voltemos aos clubes e à confederação.
Ainda no primeiro semestre haverá eleição na CBF. Curiosamente, a disputa pelo controle da entidade maior do nosso futebol está meio morna, meio quieta. Isso, porém, é como casa com crianças pequenas: o silêncio é preocupante, pois os pequenos bagunceiros certamente estarão muito entretidos aprontando alguma arte.
Muitos clubes também terão eleições – nada menos que 10 dos 12 maiores – e algumas poderão ter resultados que provocarão mudanças significativas na conduta, como é o caso do São Paulo, o primeiro a decidir a troca de comando, em abril. Em julho será o Vasco e os outros oito só terão eleições a partir de outubro: Grêmio, Cruzeiro, Internacional, Palmeiras, Botafogo, Santos, Atlético Mineiro e Corinthians, com os dois últimos em dezembro, segundo levantamento feito pela ESPN.
O imbróglio 2014 não para por aqui, pelo contrário.
O Bom Senso FC articula uma greve para o início dos estaduais. Se vai acontecer não é certo, ainda, mas é uma possibilidade que não pode ser ignorada. Os atletas querem mudanças significativas, principalmente no calendário e nas relações clube/jogador, com garantias de pagamento dos salários, inclusive com a adoção de um fair play financeiro e trabalhista.
Numa manobra inteligente e atrevida, os próprios clubes com o apoio da CBF puxaram para si próprios essa bandeira do fair play financeiro e trabalhista. Tal e qual, mas com propostas mais amplas. Um problema, porém, para os clubes, foi a aprovação do Proforte e sua transformação em lei por meio de Medida Provisória da Presidência da República, o que já era dado como favas contadas, a começar pelo Ministro do Esporte – que será candidato em outubro.
Se o perdão do Estado não acontecer, e pode até ser o caso desse pacote de perdão só valer em 2015, por conta de alguns impeditivos legais (creio que alguns impeditivos legais referentes a taxações podem ser contornados, daí o “pode ser”), a situação dos grandes devedores e de alguns clubes que vêm apostando pesado na aprovação desse projeto ficará ainda pior do que já é hoje. Sintomaticamente, os presidentes de clubes não usam e não gostam que se use a palavra “perdão” para o cerne desse projeto. Podem não gostar, pode não ter nome de perdão, mas a prática, essa incorrigível, é bem clara: será, sim, um perdão de dívidas.
Perdão para loucuras…
O jornal O Estado de S.Paulo de hoje traz matéria com o presidente do São Paulo, Juvenal Juvêncio, e esse trecho da matéria já diz muito:
“Na Europa, as pessoas ficam perplexas quando descobrem os salários que alguns pagam. Se continuarmos assim, muitos (clubes) morrerão…”
A coluna Painel FC, da Folha de S.Paulo, traz uma declaração do mesmo Juvenal Juvêncio, em linha com a declaração acima:
“Hoje, os jogadores voltam da Europa para ganhar mais no Brasil”
Curiosamente, ou não, esse mesmo São Paulo repatriou Lucio, encostado na Juventus por deficiência técnica, por comentados e nunca desmentidos quinhentos mil reais mensais, fora benefícios diversos, assegurados por excelente contrato de dois anos de duração (excelente para o jogador, dada a sua idade e condição física). Casa de ferreiro, espeto de pau. A contratação cara revelou-se, como era previsível por quem viu os dois jogos que o zagueiro fez pela Vecchia Signora, um total equívoco, culminando com o afastamento do atleta do elenco. Recebendo o salário, claro, como é de lei e como é de direito.
Muitos leitores já solicitaram uma avant première dos resultados financeiros de 2013. O melhor a fazer, nesse caso, é esperar. Esperar a publicação ou a divulgação dos balanços dos clubes, cuja data final para publicação é 30 de abril.
Apesar disso, balancetes publicados e comentários ouvidos de conselheiros e mesmo diretores de vários clubes, dão conta de uma situação extremamente preocupante em muitos deles. Porque as dívidas cresceram, porque contratações insensatas foram feitas, seja pelos jogadores envolvidos, seja pelos custos salariais e de transferência, seja pelo conjunto dos dois casos.
Essa súbita movimentação dos próprios clubes buscando um fair play financeiro não é gratuita e muito menos fruto de um ataque de bom senso – ops… eu disse “de” bom senso e não “do” Bom Senso, embora esse último ponto também seja verdadeiro e tenha lá seu peso – e sim fruto da situação mostrada pelos caixas dos grandes clubes.
Reduzir custos, enxugar salários, cortar despesas está na ordem do dia. Raul Corrêa da Silva, diretor-financeiro do Corinthians, disse alguns dias atrás que a folha corintiana terá que ser reduzida sensivelmente em 2014. Essa é uma declaração de peso, pois parte do clube com maior receita do país. E combina com o que disse o presidente do clube com a segunda maior receita, o São Paulo, na matéria já citada mais acima: o clube não fará loucuras e não entrará na “corrida maluca de salários”.
Bem-vindos a 2014.
Bem-vindo, 2014.
Que sejamos todos felizes dentro do que a realidade desse ano tão interessante nos permitir.